...E na minha noite sinto o mal que me domina. O que se chama de bela paisagem não me causa senão cansaço. Gosto é das paisagens de terra esturricada e seca, com árvores contorcidas e montanhas feitas de rocha e com uma luz alvar e suspensa. Ali, sim, é que a beleza recôndita está. Sei que também não gostas de arte. Nasci dura, heroica, solitária e em pé. E encontrei meu contraponto na paisagem sem pitoresco e sem beleza. A feiura é o meu estandarte de guerra. Eu amo o feio com um amor de igual para igual. E desafio a morte. Eu _ eu sou a minha própria morte. E ninguém vai mais longe. O que há de bárbaro em mim procura o bárbaro cruel fora de mim. Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da fogueira. Sou uma árvore que arde com duro prazer. Minha noite vasta passa-se no primário de uma latência. A mão pousa na terra e escuta quente um coração a pulsar. Vejo a grande lesma branca com seios de mulher: é ente humano (pergunta). Queimo-a em fogueira inquisitorial. Tenho o misticismo das trevas de um passado remoto. E saio dessas torturas de vítima com a marca indescritível que simboliza a vida. Cercam-me criaturas elementares, anões, gnomos, duendes e gênios. Sacrifico animais para colher-lhes o sangue de que preciso para minhas cerimônias de sortilégio. Na minha sanha faço a oferenda da alma no seu próprio negrume. A missa me apavora - a mim que a executo. E a turva mente domina a matéria. A fera arreganha os dentes e galopam no longe do ar os cavalos dos carros alegóricos. Na minha noite idolatro o sentido secreto do mundo. Boca e língua. E um cavalo solto de uma força livre. Guardo-lhe o casco em amoroso fetichismo. Na minha funda noite uma doçura me possui: a conivência com o mundo. Eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego. É o mínimo que posso fazer de minha vida: aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite. O estranho me toma: então abro o negro guarda-chuva e alvoroço-me numa festa de baile onde brilham estrelas. O nervo raivoso dentro de mim e que me contorce. Até que a noite alta vem me encontrar exangue. Noite alta é grande e me come. A ventania me chama. Sigo-a e me estraçalho. Se eu não entrar no jogo que se desdobra em vida perderei a própria vida num suicídio da minha espécie. Protejo com o fogo meu jogo de vida. Quando a existência de mim e do mundo ficam insustentáveis pela razão - então me solto e sigo uma verdade latente. Será que eu reconheceria a verdade se esta se comprovasse (pergunta). Estou me fazendo. Eu me faço até chegar ao caroço. ...
Calendário 2019
Vou por onde a arte me levar.
sexta-feira, 1 de setembro de 2017
Clarice Lispector
...E na minha noite sinto o mal que me domina. O que se chama de bela paisagem não me causa senão cansaço. Gosto é das paisagens de terra esturricada e seca, com árvores contorcidas e montanhas feitas de rocha e com uma luz alvar e suspensa. Ali, sim, é que a beleza recôndita está. Sei que também não gostas de arte. Nasci dura, heroica, solitária e em pé. E encontrei meu contraponto na paisagem sem pitoresco e sem beleza. A feiura é o meu estandarte de guerra. Eu amo o feio com um amor de igual para igual. E desafio a morte. Eu _ eu sou a minha própria morte. E ninguém vai mais longe. O que há de bárbaro em mim procura o bárbaro cruel fora de mim. Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da fogueira. Sou uma árvore que arde com duro prazer. Minha noite vasta passa-se no primário de uma latência. A mão pousa na terra e escuta quente um coração a pulsar. Vejo a grande lesma branca com seios de mulher: é ente humano (pergunta). Queimo-a em fogueira inquisitorial. Tenho o misticismo das trevas de um passado remoto. E saio dessas torturas de vítima com a marca indescritível que simboliza a vida. Cercam-me criaturas elementares, anões, gnomos, duendes e gênios. Sacrifico animais para colher-lhes o sangue de que preciso para minhas cerimônias de sortilégio. Na minha sanha faço a oferenda da alma no seu próprio negrume. A missa me apavora - a mim que a executo. E a turva mente domina a matéria. A fera arreganha os dentes e galopam no longe do ar os cavalos dos carros alegóricos. Na minha noite idolatro o sentido secreto do mundo. Boca e língua. E um cavalo solto de uma força livre. Guardo-lhe o casco em amoroso fetichismo. Na minha funda noite uma doçura me possui: a conivência com o mundo. Eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego. É o mínimo que posso fazer de minha vida: aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite. O estranho me toma: então abro o negro guarda-chuva e alvoroço-me numa festa de baile onde brilham estrelas. O nervo raivoso dentro de mim e que me contorce. Até que a noite alta vem me encontrar exangue. Noite alta é grande e me come. A ventania me chama. Sigo-a e me estraçalho. Se eu não entrar no jogo que se desdobra em vida perderei a própria vida num suicídio da minha espécie. Protejo com o fogo meu jogo de vida. Quando a existência de mim e do mundo ficam insustentáveis pela razão - então me solto e sigo uma verdade latente. Será que eu reconheceria a verdade se esta se comprovasse (pergunta). Estou me fazendo. Eu me faço até chegar ao caroço. ...
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