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domingo, 21 de agosto de 2016
" Os Subterrâneos - Jack Kerouac " - Parte 5
Seu biógrafo Charles E. Jarvis acha que o fato de Os Subterrâneos ser seu relato mais fiel e confessional, e ao mesmo tempo o mais Beat, não passa de uma " monumental ironia ". A fidelidade é relativa, como aliás em toda criação literária. Há um depoimento de Corso ( para Jarvis ), segundo o qual Mardou não tivera tanta importância assim, ela fora mais uma transa, uma companheira eventual de cama de Jack. O testemunho é útil para entender o processo criativo de kerouac. Mardou é protagonista de Os Subterrâneos, não por sua importância como caso amoroso, mas como símbolo e marco de uma trajetória. DostoievsKiano, Kerouac procurou a santidade no submundo. O uso recorrente das expressões " santo ", " santidade " e " celestial " no seu texto não é apenas um recurso literário, mas a expressão da sua obsessão. Proustiano, queria recuperar o passado, transformar suas memórias em algo de mais concreto, através de textos que são uma inovação ou um exorcismo. Leitor de Céline, sabia que era necessário mergulhar fundo no seu tempo e descrevê-lo em traços precisos. Fascinado por Whitman e Rimbaud, queria a amplidão das viagens e aventuras. Herdeiro da tradição de Jack London e Melville, sentia a atração pelo infinito do mar. Por isso, foi trabalhar na marinha mercante em 43 e escreveu relatos melvillianos de viagem. Assim como os personagens de Melville, e de Kafka, sentia-se oprimido pela burocracia e pela vida regrada, não aguentou o exército ( foi dispensado como paranoico ) nem a disciplina da universidade. Ele queria uma outra realidade, mas, ao contrário dos seus antecessores do século dezenove, não a encontrou nas viagens. Não havia mais paraísos idílicos a serem descobertos. Ele buscou o outro, mas sempre acabava se defrontando com a máscara imutável do Mesmo. Jack Kerouac revive a um dos mitos fundantes da literatura: a volta à origem, a reconquista de um tempo primordial. Para entender melhor sua busca, bem como a constelação simbólica sobre a qual repousa sua obra, é preciso voltar à sua infância numa comunidade de " canuks ", franco-canadenses católicos radicados em Massachusetts. Esse era seu verdadeiro mundo, que ele idealizava , buscava e tentava recuperar. Tanto é, que dos seus romances seu preferido era Visions of Gérard, onde ele vai mais longe na evocação e na busca do que perdera. Assim como, para muitos comentaristas, sua obra mais interessante é Dr. Sax, igualmente evocativo, mas alegórico: o desdobramento de um sonho relatado em On the Road, o combate de um mago, inspirado em William Burroughs, contra a serpente mítica do mal. A vida de Jack transcorreu sob o signo da perda e da solidão. Perda do seu irmão Gérard, morto aos quatro anos e, na sua obra, símbolo da inocência, paradoxalmente projetado em Neal Cassady, que, para Jack, era um santo. Perda da sua língua natal, o francês ( ele só foi falar inglês na escola). Nos anos 30, seu pai Leo perdeu sua gráfica e suas posses numa inundação. Seu melhor amigo de infância, George Sampas ( irmão de sua mulher Stella ) morreu na guerra. É como se a inundação do rio Merrimack em 1936 fosse, simbolicamente, uma correnteza levando embora seus entes queridos, sua língua natal, seus amigos e seus laços comunitários. Sua obra é uma tentativa da nadar contra essa correnteza, contra o tempo. Uma viagem impossível, que o consumiu e esgotou. A correnteza acabou jogando-o na margem. A crônica dos seus últimos anos é patética: sempre bêbado, dialogando com fantasmas, repetindo variações do mesmo monólogo. Jean-Louis Lebris de kerouac, Jack para o mundo, não é o único derrotado em vida e vitorioso no plano da criação literária. Essas contradições, impasses e paradoxos não são apenas um drama pessoal. Sua obra, por mais particular que seja, é também universal, espelho de todos nós. Em cada um dos seus leitores também está , talvez adormecido, o Beat aventureiro e o adulto que quer recuperar a infância. A luta e a derrota contra o tempo, a contradição entre o sujeito e seu mundo: aí estão temas que não são exclusivos de Kerouac, porém o fermento da criação literária, aspectos dessa coisa contraditória que é a própria condição humana. Por: Cláudio Willer
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